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Audiência pública na Alece aponta dados do sistema socioeducativo feminino

Por Geimison Maia
30/10/2023 20:58 | Atualizado há 2 meses

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- Foto: Máximo Moura

A Comissão de Direitos Humanos e Cidadania (CDHC) da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará (Alece) realizou, na tarde desta segunda-feira (30/10), audiência pública para o lançamento estadual do relatório da Missão sobre a Situação das Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa de Internação no Brasil, organizada pela Plataforma de Direitos Humanos (Dhesca Brasil).

Na avaliação do presidente do Colegiado, deputado Renato Roseno (Psol), esse é um momento importante para “identificar lacunas, responsabilizar (autores de violações) e fortalecer o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase)”. O parlamentar defendeu ainda que a sociedade conheça mais sobre o sistema socioeducativo e os direitos garantidos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Renato Roseno ressaltou também a necessidade de combater a tortura nesse sistema por meio da criação protocolos, da realização de procedimentos preventivos, da abertura de canais de denúncia, da realização de inspeções e da responsabilização de agentes que cometeram atos em desconformidade com a legislação.

A relatora da Plataforma Dhesca, Isadora Salomão, informou que quase 70% de meninas privadas de liberdade no Brasil moram em cidade diferente da que está situada o centro de atendimento socioeducativo; mais da metade tem entre 17 e 18 anos e possui defasagem escolar; 18% são mães; e 5% se declararam transgêneros.

Ela ainda citou alguns avanços nos últimos anos, como a resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) de 2020, que determina a abolição de funcionários socieducativos homens da equipe que acompanha as atividades diárias nos centros femininos de privação de liberdade; e uma abordagem específica para as adolescentes grávidas e mães.

A presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de Fortaleza, vereadora Adriana Gerônimo (Psol), lamentou que “as meninas que estão privadas de liberdade no sistema socioeducativo são vítimas de diversas facetas do preconceito”. No âmbito municipal, ela criticou a dificuldade de acesso à rede pública de saúde, em especial relacionada à saúde mental, pois há somente dois Caps voltados ao atendimento de crianças e adolescentes em Fortaleza.

A parlamentar citou ainda dificuldades na infraestrutura de órgãos como o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) do bairro Mucuripe, que passou a atuar em local provisório sem informar devidamente aos jovens em conflito com a lei que são acompanhados pelos profissionais da unidade.

RELATÓRIO NO CEARÁ

Outro relatório apresentado na audiência foi o realizado a partir da inspeção no Centro Socioeducativo Feminino Aldaci Barbosa, em Fortaleza. A presidente do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura no Ceará, Marina Araújo, informou que foram encontradas diversas violações e mesmo práticas de tortura, como uso excessivo da força pelos agentes; utilização abusiva de algemas; dificuldade no atendimento médico e psicológico; violência moral e sexual; insuficiência de produtos de higiene e de roupas íntimas; ausência de atendimento específico a adolescentes trans, entre outras situações, que estão em desconformidade com o estabelecido pelo Sinase.

Na avaliação da presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos, Leila Passos, é possível observar, nos espaços de privação de liberdade de jovens, uma maioria de pessoas negras e um processo de desumanização desses socioeducandos. Ela defendeu a necessidade de um protocolo de prevenção e enfrentamento à tortura e ao assédio sexual no sistema socioeducativo; de evitar o uso indiscriminado de algema; de fechar locais destinados ao isolamento social; de reavaliar as medidas socioeducativas de internação nos casos de adolescentes grávidas, lactantes ou responsáveis por crianças; de garantir o respeito à identidade de gênero; de formar adequadamente profissionais que atuam nas unidades; de garantir a convivência com a família; entre outras recomendações.

O relatório foi produzido a partir de uma visita no dia 5 de maio de 2023, que teve o acompanhamento do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos (CEDDH) e do Comitê de Prevenção e Combate à Tortura (CEPTC), incluindo representantes do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca), da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Ceará (CDH-Alece) e do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE).

ALDACI BARBOSA

A situação do Centro Socioeducativo Feminino Aldaci Barbosa foi objeto de falas de outras instituições presentes na audiência. Além dos problemas já apontados nos relatórios, a analista de Comunicação da Coalizão pela Socioeducação, Rosa Menezes, citou a ausência de dados sobre raça e etnia dos adolescentes atendidas no local, o uso de spray de pimenta e a falta de privacidade nos alojamentos e banheiros. Rosa Menezes lamentou que legislação brasileira não esteja sendo respeitada na prática. “A Constituição Federal coloca crianças e adolescente como prioridade absoluta do governo, da família e da sociedade civil”, lembrou.

A defensora pública e integrante do Núcleo de Atendimento aos Jovens e Adolescentes em Conflito com a Lei (Nuaja), Ivana Dias Mascarenhas Alves, lembrou que os adolescentes que chegam ao sistema socioeducativo estão em situação de vulnerabilidade, muitas vezes vítimas de violência física, sexual e psicológica. Ela ainda apresentou a situação observada do Aldaci Barbosa em visita da Defensoria Pública na semana passada, em que foram observados alguns avanços, como a disponibilização de kits de higiene e vestuários; o acesso ao ensino básico; o atendimento médico e psicológico; a troca de colchões; a existência de um centro de justiça restaurativa para resolver conflitos; a inexistência de jovens grávidas na unidade no momento; entre outros.

Segundo Ivana Dias, houve conflitos na unidade por conta de mudanças na direção e isso acabou gerando uma reação que resultou em mais violações de direitos. Na avaliação dela, se deveria caminhar para o fim de medidas de internação dos adolescentes, em especial mulheres, privilegiando outras medidas que não envolvam a privação de liberdade.

A promotora de Justiça do Ministério Público do Ceará (MPCE), Antônia Lima, ressaltou que a instituição fez quatro visitas ao Aldaci Barbosa somente neste ano, além de inspeções sistemáticas em todo o sistema socioeducativo do Ceará. Entre as sugestões apresentadas por ela, estão a extinção do espaço usado para punição disciplinar; a criação de um sistema para organização dos dados; a atualização dos planos políticos pedagógicos com a participação das famílias e adolescentes; e o fortalecimento da integração entre os sistemas que acompanham os adolescentes em privação de liberdade e os demais - como nos casos de liberdade assistida.

O juiz de Direito da 5ª Vara da Infância e Juventude e membro do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e de Execução de Medidas Socioeducativas (GMF), Manuel Clistenes, explicou que a instituição tem recebido denúncias feitas por órgãos da sociedade civil sobre o sistema socioeducativo. Ele afirmou que o GMF trabalha na criação de protocolo interno para conseguir acompanhar os desdobramentos desses casos.

Manuel Clístenes ainda ressaltou que medidas de internação para adolescentes grávidas têm sido evitadas e aplicadas somente em casos de ato infracional praticado com violência ou grave ameaça e reincidência. Além disso, essas jovens são priorizadas nas chamadas audiências concentradas. O juiz criticou a estrutura física do Centro Aldaci Barbosa e avaliou que a solução passa pela construção de uma nova unidade com infraestrutura adequada.

            NOVA UNIDADE E CONCURSO 

O superintendente do Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo do Ceará (Seas), Roberto Bassan, informou que uma nova unidade será construída para substituir o Centro Aldaci Barbosa - com previsão de lançar o edital da licitação ainda neste ano.

Além disso, o secretário anunciou que será realizado concurso público para o sistema socioeducativo cearense, a fim de reforçar o quadro de profissionais e criada uma ouvidoria para receber as reclamações e denúncias da sociedade civil. “A gente acredita que esse canal vai avançar no diálogo com a sociedade civil e com as famílias”, ponderou.

Em relação ao Aldaci Barbosa, Roberto Bassan ressaltou que tem havido um crescimento da proporção de agentes femininas - que passaram de 50% para 70% do total de servidores na unidade. Com isso, foi possível retirar os agentes masculinos das alas e alojamentos das adolescentes. O secretário enfatizou ainda que foram instaurados processos, com o objetivo de investigar as denúncias de infrações ocorridas no centro.

Já a secretária de Igualdade Racial do Ceará, Zelma Madeira, comentou que o perfil observado no sistema socioeducativo “retrata uma sociedade racializada”, com a existência de uma desigualdade em desfavor da população negra. Ela adiantou ainda que está sendo desenvolvido o projeto Sankofa, com objetivo de estimular a leitura, o letramento e o debate racial dentro das unidades socioeducativas. “Que essa juventude, que tem muita potência e inteligência, possa também criar”, assinalou. Além disso, Zelma Madeira destacou que a secretaria tem feito um trabalho com as demais pastas para promover o debate sobre a questão racial nas políticas públicas.

Participaram ainda da audiência a assessora especial de Gestão e Comunicação da Seas, Larissa Carneiro, além de integrantes do Comitê de Prevenção e Combate à Violência (CPCV) da Alece e de organizações da sociedade civil.

Edição: Adriana Thomasi



 

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