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Setembro Amarelo - A convivência com o luto

Por Ana Vitória Marques
28/09/2023 11:03 | Atualizado há 6 meses

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Arte: Núcleo de Publicidade/Alece

Terezinha e Joseval Maximo viram o seu mundo desabar e tudo ficar cinza e sem sentido após a partida da filha caçula deles, Marina, em 2017, morta por suicídio. A partir dali, uma pergunta pairava: e quem fica? Como viver com a dor desse luto? 

Nos últimos anos, a temática da prevenção ao suicídio e conscientização sobre saúde mental tem sido cada vez mais falada e muitos setores da sociedade estão sendo sensibilizados. Apesar do olhar mais atento ao assunto, mais de 700 mil pessoas ainda morrem todos os anos por suicídio, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). 

Ainda de acordo com a OMS, para cada suicídio, pelo menos cinco pessoas são impactadas profundamente pelo ato suicida. Esses números são considerados subestimados e uma pesquisa da organização americana National Action Alliance for Suicide Prevention traz um número bem maior: 115 impactados, entre pessoas que tiveram a vida interrompida por um curto período ou em que o ato teve um efeito devastador em sua existência.

Esses dados nos chamam a atenção para o outro lado do suicídio, o de quem fica e tem que conviver com a dor do luto. Junto a isso, vem um tornado de sentimentos e emoções, alguns próprios ao luto como a negação e a saudade do ente amado, outros próprios dos enlutados pelo ato suicida, como a culpa, a busca do porquê e os “e se…”, que fazem a pessoa pensar o que poderia ter sido diferente.  

Nesta terceira e última matéria do Especial Setembro Amarelo, a Agência de Notícias aborda o processo de reconstrução em meio ao luto, tendo para isso o suporte de grupos de apoios às famílias sobreviventes do suicídio e a ajuda especializada. Para acompanhar as outras produções deste especial, clique aqui.

SOBRE O LUTO

O luto é um processo subjetivo e individual que, de acordo com a psicóloga da Célula de Saúde Mental e Práticas Sistêmicas Restaurativas da Alece, vinculada ao Comitê de Responsabilidade Social (CRS), Nara Guimarães, é determinado como o período em que acontece a perda até o momento de aceitação, no qual o indivíduo se abre de novo para o mundo e consegue voltar a viver, apesar da ausência do ente amado e da dor. 

Nara Guimarães, psicóloga da Célula de Saúde Mental e Práticas Sistêmicas Restaurativas da Alece. Foto: Máximo Moura
 

A profissional, que é especialista em tanatologia (estudo da perda, morte e separação), também explica que o luto passa por cinco fases, conceitos estes formulados pela psiquiatra suíça Elisabeth Kübler-Ross: negação, raiva, negociação/barganha, depressão e aceitação. 

“Não necessariamente a pessoa passa por todas as fases seguidamente, você pode alternar entre uma fase e outra. O que a gente sempre costuma falar no período de acompanhamento de uma pessoa enlutada é que ela nunca vai esquecer essa história ou a pessoa, o fechamento de luto saudável não é que você esqueça o que se passou, mas é que você lembre sem dor, ter saudade, mas uma saudade que já não dói, você conseguir aceitar viver ‘apesar de’”, afirma Nara Guimarães. 

E quando o luto acontece por causa de um suicídio? Como continuar a viver depois do acontecido? É possível ressignificar essa dor? Com quem falar sobre o que aconteceu sem ser julgado? 

Essas foram algumas dúvidas que assolaram a cearense Lucinaura Diógenes que, em 2008, teve sua vida atravessada por essa temática, quando a filha mais nova dela, Bia, faleceu pelo suicídio, com pouco mais de um mês depois de ter completado 13 anos. Diante da dor, da falta de respostas e de informações corretas sobre o assunto, Lucinaura, junto com o esposo e a filha mais velha, resolveu criar o Instituto Bia Dote, em 2013. 

Desde então, o Instituto, localizado em Fortaleza, desenvolve trabalhos de conscientização e prevenção ao suicídio, com atendimentos individuais e em grupo, além de projetos durante todo o ano. No vídeo a seguir, Lucinaura fala mais das características próprias dos sobreviventes enlutados por suicídio e dos tabus que são enfrentados por essas pessoas. 

Imagens: Odério Dias

Na mesma linha, a psicóloga da Célula de Saúde Mental e Práticas Sistêmicas Restaurativas da Alece, Nara Guimarães, também comenta sobre as características próprias do luto pelo suicídio e ressalta a importância da ajuda especializada nesse processo. 

“Fica muito inerente aos que ficaram essa culpa do que eu poderia ter feito diferente. Às vezes as pessoas deixam sinais, às vezes não. Mas eu acho que é um luto mais difícil de ser fechado, porque vem essa sensação de impotência, e também por ser antinatural. Então é importante, sim, as redes de apoio, ter uma crença, e é bom buscar um profissional da área de saúde mental, ter uma escuta especializada (terapia de grupo, terapia individual). O luto não se supera, se elabora.”

POSVENÇÃO: A PREVENÇÃO DE NOVOS CASOS E O APOIO AOS ENLUTATOS PELO SUICÍDIO 

Por esses fatores, os enlutados por esses casos são considerados um grupo vulnerável com fator de risco para o suicídio e que merece atenção. É diante desse contexto que a chamada posvenção ganha sentido, um termo ainda não tão conhecido. 

Para Lucinaura, a posvenção é uma forma de prevenção: “A posvenção são todos os cuidados que são trazidos para a pessoa que está em um luto por suicídio, desde a notícia da morte, os primeiros socorros psicológicos, o atendimento psicológico individual, o atendimento em grupo e o grupo de apoio para familiares. Então ela cobre ou abarca todos os cuidados que uma pessoa enlutada por suicídio pode receber. Como é que se faz a posvenção? Se faz através do acolhimento, da escuta empática, sem julgamento. Se faz a gente também começando a trabalhar os estigmas que uma morte por suicídio traz”, afirma. 

E nesse processo, além da ajuda especializada, conversar com quem entende pelo que você passou também é essencial para superar algumas fases do luto e compreender aquilo que sente. 

Assim como Lucinaura, a corretora de seguros Terezinha Maximo também teve seu primeiro contato com a temática do suicídio a partir do falecimento da filha dela, Marina, em 2017, aos 19 anos. Para ela, foram nos grupos de apoio aos sobreviventes enlutados pelo suicídio que ela encontrou acolhimento.

“Eu precisei encontrar pessoas que passaram pelo mesmo, que quisessem conversar. Porque eu conhecia outras pessoas que haviam perdido por suicídio, mas elas não falavam sobre o assunto. E quando eu cheguei no local onde era a reunião, as pessoas foram se apresentando, contando as suas histórias, e eu falei ‘poxa, eu acho que estou no lugar certo. Porque as pessoas que estão falando aí, tudo o que elas falam aconteceu comigo, elas entendem o que eu estou sentindo’. E, a partir de então, eu sempre fui, porque eu tinha necessidade de falar.”

Foi também a partir desses encontros que ela percebeu uma lacuna nas informações sobre o pós-suicídio e conheceu o Instituto Bia Dote. Inspirada na iniciativa da família cearense, Terezinha, junto ao esposo Joseval Maximo, fundaram o blog No m’oblidis, que recebe esse nome em homenagem à uma expressão em catalão usada pela filha, que significa “não me esqueça”. 

O blog e o perfil no instagram abordam a prevenção e posvenção do suicídio, como um espaço para famílias enlutadas pelo ato suicida. O casal também criou um grupo de apoio em São Bernardo do Campo, lugar onde residem. 

Com a pandemia da Covid-19, Terezinha comenta que os grupos passaram a ser todos online, o que ampliou sua rede de contatos com pessoas que passavam pelo mesmo em todo o País. Diante do cenário, em 2022, ela fundou junto com outros enlutados pelo suicídio a Associação Brasileira dos Sobreviventes Enlutados pelo Suicídio (Abrases), entidade que preside atualmente. 

Abrases foi fundada em 2022. Foto: Divulgação

E entre as duas enlutadas entrevistadas para essa matéria, Lucinaura Diógenes e Terezinha Maximo, uma percepção se repete: o Setembro Amarelo é extremamente importante, mas ainda precisa ser melhor abordado, além disso, há a necessidade de se criarem políticas públicas mais efetivas. 

No áudio a seguir, Terezinha aborda mais sobre esse tópico:

“Muitas vezes a campanha deixa muito na questão da pessoa: ‘se precisar, busque ajuda’. Onde é que a pessoa vai buscar ajuda? E quando ela vai buscar ajuda, que não encontra, é desesperador. Então eu acho que a gente precisa começar a lutar por mais programas de saúde, por mais lugares que possam atender”, defende Lucinaura. 

RESSIGNIFICAR A DOR PELO AMOR E PELA MEMÓRIA DOS QUE SE FORAM/MAIS DO QUE SOBREVIVER,VIVER

Se você perdeu alguém por suicídio ou conhece alguém que passou por isso, nesse processo de luto é importante se atentar a alguns pontos: tenha calma e paciência, respire fundo; saiba que o processo é dolorido e viva o luto, chore e se cerque de pessoas importantes. A psicóloga da Alece, Nara Guimarães, ensina uma frase que é usada nas terapias para momentos como esse:

“Você se foi e eu fiquei. Que pena que teve que ser assim. Um dia eu também vou, mas, por enquanto, eu fico e vou fazer algo de muito bom em sua homenagem”.

É seguindo essa lógica que Lucinaura e a família mantém o Instituto Bia Dote, como uma forma de ressignificar a morte da filha Bia e fazer com que o legado dela permaneça por gerações. 

“É difícil a gente falar em superação, principalmente para quem perdeu alguém que ama muito. Como é que eu posso levar a minha filha na minha vida? Como é que eu vou me reconstruir? É através de significados. Então a gente pensou como era que podia de alguma forma trazer tudo isso que aconteceu para reconstruir a nossa vida, honrando a morte de Bia também”, explica Lucinaura.

E, mais do que sobreviver, tentar viver ‘apesar de…’, ainda que uma vida diferente daquela que tinha antes, mas tão significativa quanto. É com esse lema que Terezinha e o esposo Joseval também têm tentado continuar os dias deles, trabalhando no blog que criaram e na Abrases. 

“O amor que eu tenho pela Marina flui nos meus textos, nos meus acolhimentos. É devido ao amor que a gente transforma a dor em algo, em palavras, em canções, em pinturas… Então, por isso esse trabalho de mostrar para outras pessoas que elas não estão sozinhas, que elas não precisam ter vergonha de falar que alguém morreu por suicídio, já que ele acontece por vários motivos”, destaca. 

Terezinha e Joseval Maximo perderam a filha em 2017. Foto: arquivo pessoal
 

GRUPOS DE APOIO AOS SOBREVIVENTES ENLUTADOS PELO SUICÍDIO

  • Instituto Bia Dote

Para conhecer mais as ações do instituto e saber sobre o grupo de apoio, acesse:

Instagram - @institutobiadote

Site - https://institutobiadote.org.br/

Contato - (85) 3264-2992 / (85) 99842-0403

  • No m’oblidis

Para ler os textos e acompanhar mais informações sobre a prevenção e posvenção do suicídio do blog, além de saber sobre o grupo de apoio deles, acesse:

Instagram - @nomoblidis1

Site - https://nomoblidis.com.br/

Contato - (11) 98649-1484 / terezinha@nomoblidis.com.br

  • Abrases

Para saber mais sobre as ações da associação e encontrar outros grupos de apoio, acesse:

Instagram - @abrases_br

Site - https://abrases.org.br/

Contato - (11) 3907-0134 / abrases@abrases.org.br

 

Esta é a terceira e última produção da série de matérias do Setembro Amarelo, realizada pela Agência de Notícias da Alece. A primeira destacou os diversos projetos da Alece nessa área e abordou um panorama geral da questão no Estado. Já na segunda, são abordadas as redes de atenção com políticas estaduais para saúde mental. Participam dela os repórteres Geimison Maia, Pedro Emmanuel Goes e Ana Vitória Marques; as editoras Clara Guimarães e Lusiana Freire; os fotógrafos Máximo Moura e José Leomar; o videomaker Odério Dias; a revisora Carmem Ciene e o Núcleo de Publicidade Institucional da Casa.

 

Edição: Lusiana Freire
 

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