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Bullying nas escolas: um desafio para a educação

Por Suely Frota
27/10/2023 15:23 | Atualizado há 1 ano

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- Dário Gabriel

Imagine uma criança de sete anos que, no caminho da escola para casa, é chicoteada pelos colegas. Antes, a mesma menina já havia sofrido diversos tipos de violências físicas e verbais no ambiente escolar. O relato, que parece o roteiro de um filme de terror, na verdade é a história de Rayane Fernandes, vítima de bullying durante toda a infância e parte da adolescência. Filha de agricultores da zona rural de Quixadá, ela nem sabia que à época era vítima de bullying, terminologia ainda recente e adotada em diversos países para classificar comportamentos agressivos, cruéis e praticados repetidamente como instrumento de intimidação contra um indivíduo que não é aceito por um grupo. Infelizmente, é na escola, local de aprendizado, evolução e acolhimento, onde acontece a maioria dos casos. 

O Brasil é um dos países com maior índice de violência escolar no mundo. De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (PeNSE), em 2019, mais de 40% dos estudantes adolescentes foram vítimas de bullying no País. Dez anos antes, em 2009, esse percentual era de 30,9%. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a incidência maior desse tipo de violência concentra-se na rede privada de ensino. De 2009 a 2019, a parcela dos alunos de escolas públicas que admitiu ter sofrido com a prática subiu de 28,9% para 39,9%. Já na rede privada de ensino cresceu de 35,5% para 41,5%. Na década, a parcela de meninos com idade entre 13 e 17 anos vítimas desse tipo de agressão aumentou de 32% para 35,4%. Entre as meninas com a mesma faixa etária o aumento percentual foi de 28,8%, mostrando o quanto as mulheres são mais vulneráveis aos diversos tipos de violência.

Foto: Dário Gabriel

Segundo a psicóloga clínica Juliana Morais, o bullying é um problema social, e a origem desse tipo de comportamento muitas vezes está relacionada a questões dentro do ambiente familiar. Ela explica que, na maioria dos casos, o autor da agressão pode estar vivenciando em casa situações de violência ou negligência pelos pais, o que causa impacto direto no desenvolvimento socioemocional daquele indivíduo. "Às vezes, é aquela criança que não recebe limites adequados, que não tem regras estabelecidas e que não consegue entender até onde vai seu direito e o seu dever. Não consegue entender sobre empatia", explicou. A psicóloga lembra que a criança aprende muito pela observação, então o que ela vê, replica. Para o bem ou para o mal. 

Psicóloga clínica Juliana Morais / Foto: Dário Gabriel

ENFRENTANDO A PERSEGUIÇÃO

O bullying é um ato tão covarde e cruel que deixa marcas para a vida toda, sequelas não perceptíveis fisicamente – são feridas na alma. Geralmente, as vítimas desenvolvem quadros de transtornos alimentares, ansiedade, depressão, síndrome do pânico. Aos oito anos, Rayane Fernandes encontrou na escrita de cordéis uma válvula de escape às agressões que sofria. Hoje, aos 30 anos, a cordelista e professora ainda carrega as marcas das agressões sofridas quando criança. "Eram chutes, empurrões, palavras depreciativas sobre meu cabelo ou meu corpo. Às vezes eu saía da escola e esses ditos colegas iam me deixar quase perto de casa me batendo com cipó", lembra. 

Tanta violência abalou a segurança e autoconfiança da menina Rayane, que muitas vezes resistia em ir à escola. "E agora como é que vai ser? Eu amo a escola, mas tenho medo de sofrer violência, tenho medo de apanhar", lembrou. Com medo, ela sofria calada, não falava aos pais sobre o problema e nunca teve a empatia dos demais colegas e nem a proteção da escola ou dos professores. "Eu sofria essa violência dentro do ambiente escolar, dentro da sala de aula”. Ainda hoje ela carrega as marcas da violência sofrida na infância. Foram tantas vozes negativas dizendo que ela não era capaz, que Rayane ainda tem que lutar contra alguns fantasmas do passado. "São muitas feridas. O meu otimismo foi diretamente afetado, eu passei a não acreditar em mim e a sacrificar muito a questão do meu cognitivo. Eu começava a estudar, mas sempre achava que era insuficiente, porque sempre escutei que eu não era o suficiente, que eu não era capaz e infelizmente acabei processando isso", revelou. 

O relato de Rayane é um comportamento clássico de quem teve a infância marcada pelo bullying. Conforme a psicóloga clínica Juliana Morais, esse tipo de agressão gera impactos terríveis na vida e desenvolvimento da vítima: "A criança se isola, tem problemas de raiva, agressividade, ansiedade e depressão. São comportamentos que vão sendo afetados, como a questão da autoestima e a própria relação dela com os responsáveis", pontuou. A psicóloga explica que o trauma sofrido na infância ou adolescência pode ter reflexos para toda a vida. 

Rayane Fernandes precisou de anos de terapia para entender o que aconteceu com ela e dar um novo rumo à sua vida. A aluna antes agredida no ambiente escolar em Quixadá encontrou na educação uma válvula para fugir de tanta violência. Formada em Letras, hoje está mais uma vez na sala de aula, dessa vez como professora da Escola Estadual de Educação Profissional Dr. José Alves da Silveira (EEEP), em Quixeramobim. Rayane desenvolve com seus alunos projetos voltados à uma cultura de paz, pela não violência. "Aqui na escola eu consigo ser a melhor pessoa que eu sou, e quando eu consigo ser a melhor pessoa que eu sou para mim, eu consigo ser a melhor pessoa que eu posso para as outras pessoas também", ressaltou. Na turma de adolescentes, a professora passa a mensagem que gostaria de ter recebido à época quando aluna: da cultura de paz, do respeito à diversidade e contra todo tipo de violência. "Aqui nós temos uma escola que pulsa por respeito, por igualdade e por desconstrução de qualquer tipo de exclusão e violência", frisou.

Foto: Dário Gabriel

COMISSÃO PARA A PROTEÇÃO

A Escola Estadual de Educação Profissional Dr. José Alves da Silveira é uma das 736 escolas estaduais que conta com uma Comissão de Proteção e Prevenção à Violência contra a Criança e o Adolescente, através de uma parceria da Secretaria da Educação do Estado (Seduc) com o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE). A criação dessas comissões está prevista na Lei Estadual 17.253, oriunda de projeto de lei de autoria do deputado Renato Roseno (Psol). O colegiado é composto por um diretor escolar, um professor e um funcionário da escola. As instâncias têm autonomia para desenvolver, com a comunidade escolar, planos de prevenção às diversas expressões de violência identificadas na escola; notificar e tomar as medidas necessárias, do ponto de vista educacional e legal, nos casos de violência contra a criança e adolescente; implantar protocolo único de registro, sistematização e notificação nas escolas em casos de violência. 

Foto: Dário Gabriel

Renato Roseno explica que já existia previsão de notificação, por parte das escolas, de situações de violência. Segundo ele, a Lei 17.253, que autorizou a criação das comissões de proteção e prevenção à violência contra a criança e o adolescente, foi formatada por ele, com o envolvimento também de diversos autores unidos em prol da defesa infantojuvenil. "Junto com Visão Mundial, o Fórum DCA, o Ministério Público do Estado (MPCE) e a própria Secretaria da Educação do Estado (Seduc), reformulamos a lei das comissões de notificação na escola. A ideia é criar uma cultura preventiva, para que cada escola, seja ela pública ou privada, crie a sua comissão, tenha um plano de prevenção e um protocolo para, quando identificar uma situação de violência, poder notificar o acolhimento e cuidado com aquela criança ou adolescente", ressaltou.

VIOLÊNCIA NAS ESCOLAS, NÃO! 

Reconhecendo a importância de garantir a efetivação e o bom funcionamento dessas comissões em todas as escolas cearenses, o Ministério Público do Ceará (MPCE) lançou, em março de 2022, por intermédio do Centro de Apoio Operacional da Educação (CAOEDUC), o projeto "PREVINE - Violência nas escolas, não!".  O MPCE firmou parceria com as secretarias da Educação do Estado e municípios para garantir a criação dessas comissões e, através do projeto, oferece formação aos integrantes das instâncias de prevenção à violência contra crianças e adolescentes. A qualificação acontece em formato de ensino a distância, ministrado através da Escola Superior do Ministério Público e do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional (CEAF). Após a formação, cada comissão deve elaborar o plano de prevenção à violência. 

O promotor Jucelino Oliveira Soares, coordenador auxiliar do Centro de Apoio Operacional da Educação, lembra que o MPCE sempre teve uma atuação marcante na temática de prevenção da violência contra crianças e adolescentes. Com a vigência da Lei 17.253, o CAOEDUC decidiu agir para garantir a implementação e fortalecimento dessas comissões. "A gente firmou um termo de cooperação com o Estado que englobava uma rede de mais de mil escolas e, com o auxílio das promotorias de justiça e das secretarias de educação dos municípios, passamos então a fomentar a criação das comissões. Uma vez criadas as comissões de prevenção combate às violências, trabalhamos na capacitação dos membros das comissões, ofertando curso dentro da plataforma da Escola Superior do Ministério Público", explicou.

Conforme Jucelino, 6.737 professores e funcionários das escolas já foram capacitados através da plataforma. Cinquenta redes municipais de ensino concluíram o curso e 811 planos de prevenção foram elaborados e estão em execução. Na rede estadual de educação, foram criadas 590 comissões, sendo que 365 já realizaram a capacitação e outras 112 já concluíram o plano de prevenção. 

Promotor Jucelino Oliveira Soares / Foto: Dário Gabriel

O promotor explica ainda que, como as comissões atuam nas diversas formas de violência contra crianças e adolescentes, a capacitação ofertada pelo CAOEDUC é bastante abrangente, com vários módulos. "Trabalhamos temáticas como o bullying, mas também as prevenções da violência sexual, do trabalho infantil e gravidez na adolescência", citou o coordenador auxiliar do Centro de Apoio Operacional da Educação.

Bimestralmente o CAOEDUC realiza reuniões com os integrantes das comissões para a troca de experiências, discussão de práticas exitosas e possíveis deficiências.  "Com isso a gente consegue melhorar de acordo com as necessidades que eles vão apresentando, integrando cada vez mais os órgãos dos municípios, do Estado e as escolas. Isso também possibilita que a gente possa ofertar capacitações adicionais", explicou.

CONSTRUÇÃO DE UM AMBIENTE SEGURO

Irecê Ferrnandes é diretora da  EEEP Dr. José Alves da Silveira e integrante da Comissão de Proteção e Prevenção à Violência contra a Criança e o Adolescente. A diretora vê com entusiasmo o trabalho do MPCE na proteção de crianças e adolescentes. Segundo ela, sempre houve essa preocupação dentro da escola com relação às diversas violências infantojuvenis, mas ela diz que o PREVINE ampliou essa atuação. "Essa parceria mais próxima do Ministério Público, comunidade escolar e órgãos de proteção às crianças e adolescentes tem garantido bons resultados dentro do ambiente escolar. Hoje a gente está ressignificando essas ações com essa parceria bem mais estreita com os órgãos de proteção. É fundamental para a escola que a gente possa contar com o apoio de outras instituições", destacou a diretora.

Irecê participou do curso de formação ofertado pelo PREVINE. Através da qualificação, ela disse que está sendo possível reconhecer com mais clareza situações de violência dentro do ambiente escolar, mesmo quando acontecem fora da escola. "Dentro dessa formação, a gente focou nesse aspecto desse reconhecimento da escola com um espaço protetivo e de prevenção da violência contra crianças e adolescentes.", reforçou. 

Na qualificação que Irecê e outros educadores receberam do MPCE, eles conseguiram aprofundar conhecimentos importantes para o pleno desenvolvimento dos alunos e para uma cultura de paz dentro das escolas: "Discutimos sobre práticas abusivas, situações de violência, a questão do trabalho infantil, bullying, a questão de problemas emocionais ligados a depressão, a contextos de ansiedade", citou a diretora. Conforme Irecê, os conhecimentos transmitidos pelo MPCE/CAOEDUC têm garantido mais eficácia ao trabalho da comissão, refletindo positivamente no ambiente escolar.  Através do Previne, quase de oito mil educadores e funcionários de escolas já foram capacitados.

Irecê Fernandes / Foto: Dário Gabriel

Garantir treinamento e capacitação para os integrantes das comissões de proteção e prevenção à violência contra a criança e o adolescente, através do PREVINE, é assegurar mais direitos e segurança às crianças dentro e fora do ambiente escolar. O promotor Jucelino Oliveira Soares, coordenador auxiliar do CAOEDUC, lembra que, anteriormente, a notificação, por parte dos educadores, de violência contra estudantes era obrigatória. O problema é que não era feito de forma sistematizada. "Com a criação das comissões e a capacitação desses integrantes, agora há uma sistemática de como fazer isso. Uma vez verificado uma situação de violência, a escola tem um fluxo de como essa notícia de violência vai ser tratada. A partir dessa notificação há o direcionamento dessa criança e dessa informação, para que inclusive ela não seja revitimizada", explicou. 

Jucelino Oliveira ressalta que, além de agir no combate às violações de direitos, um dos pilares do PREVINE é a prevenção, como o nome do projeto sugere. "No campo da prevenção, com a integração de todos os órgãos de proteção, uma questão que é muito trabalhada é a cultura de paz, com a aproximação também com as famílias", frisou. O promotor lembra que a violência constatada dentro do ambiente escolar geralmente é multifatorial, então inserir a família dentro das ações por uma cultura de paz é imprescindível. "Então o trabalho da comissão vai ser também promovendo a conciliação do grupo familiar, vai ser promovendo uma cultura de paz naquela comunidade que está sofrendo algum tipo de violação, está em situação de vulnerabilidade", afirmou.

Foto: Dário Gabriel

Rayane Fernandes, ex-vítima de bullying e agora educadora engajada na construção de um ambiente escolar mais harmônico e com respeito às diversidades, comemora a nova realidade que está se construindo dentro das escolas. "O Previne é um projeto que olha o outro com olhos de empatia, de respeito e de busca por igualdade. É uma escola que rompe barreiras, que desconstrói preconceitos e é uma ação que se volta integralmente à ruptura de qualquer forma de violência, seja ela física ou verbal", comemorou. 

Foto: Dário Gabriel

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