Caminhos para a construção da sustentabilidade social na produção do H2V
Por Ana Vitória Marques/Geimison Maia25/05/2023 09:16 | Atualizado há 7 meses
Compartilhe esta notícia:
Pesquisadores, parlamentares e a comunidade têm estudado os possíveis impactos positivos e negativos que o hidrogênio verde pode trazer para o estado do Ceará, além dos desafios que precisam ser superados para que a produção se torne uma realidade.
Essas iniciativas são importantes para entender qual a realidade em que essa nova cadeia produtiva vai se inserir, compreendendo, entre outras coisas, qual o potencial econômico já existente nos territórios em que as novas indústrias serão instaladas, como também mapeando quais as comunidades que habitam esses espaços e como elas serão afetadas. Além disso, é a partir desses estudos que se pode gerar dados e pensar soluções, mas, sobretudo, permitir que a população cearense seja vista em sua totalidade e considerada em todo o processo.
Nesta terceira e última matéria do Especial Hidrogênio Verde, da Agência de Notícias da Alece, trazemos os principais desafios e possíveis impactos dessa produção e os caminhos para o desenvolvimento sustentável e de inclusão.
PRINCIPAIS DESAFIOS PARA A PRODUÇÃO DO H2V
Para que todos os impactos positivos projetados sejam oficializados e cumpridos, alguns desafios precisam ser superados, os quais vão desde a criação de políticas públicas de regulamentação e de incentivo, abordadas na primeira matéria do especial, aos avanços tecnológicos que permitam a produção e o transporte em grande escala do H2V.
O secretário do Desenvolvimento Econômico e Trabalho do Ceará, Salmito Filho, cita como um dos pontos que precisam ser enfrentados a logística de linhas de transmissão. Esses equipamentos são necessários para distribuir a energia produzida no País entre os diferentes pontos do território no Ceará, o que envolve também transportar a energia eólica e solar produzida tanto nos grandes parques como por microgeração.
“Nós temos uma demanda, segundo alguns estudos, de pelo menos duas a três linhas de transmissão”, explica Salmito Filho. Para isso, são necessários inicialmente estudos da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), do Ministério das Minas e Energia (MME), comprovando a necessidade dessas linhas. Depois disso, essa demanda é encaminhada ao MME, que posteriormente pauta a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
Para o professor do Mestrado Acadêmico em Ciências Físicas Aplicadas da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e coordenador do Laboratório de Energias Renováveis (LER), Lutero Lima, as universidades têm papel fundamental nesse processo. Além disso, ele visualiza na parceria entre os diversos setores envolvidos um caminho para a solução dos problemas encontrados e que podem vir no futuro.
Considerado o “pai do hidrogênio verde no Ceará”, Lutero aborda no vídeo a seguir um pouco mais sobre esses desafios e os impactos socioambientais que a produção do H2V pode trazer.
POSSÍVEIS IMPACTOS SOCIOECONÔMICOS E AMBIENTAIS
Seguindo na mesma linha, a professora Adryane Gorayeb, do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), que tem pós-doutorado em Geografia pela Texas A&M University/EUA com foco em Energias Renováveis, aborda alguns desses impactos e comenta a necessidade de buscar soluções junto às comunidades, por meio do diálogo e da participação delas nas decisões.
A professora explica que, quando falamos da produção de hidrogênio verde em si, o processo acontece dentro das indústrias e envolve muito mais a engenharia química do que mudanças diretas no ambiente. Agora, quando olhamos para a cadeia produtiva que viabiliza essa produção, encontramos outros efeitos, já que a base energética para a quebra da água em hidrogênio e oxigênio são as energias eólica e solar.
Adryane Gorayeb analisa cartografia social para mapear comunidades de municípios do litoral cearense. Foto: José Leomar
“Nos últimos anos, aplicando a cartografia social e outras técnicas de levantamento de dados qualitativos das ciências sociais, nós conseguimos chegar a esse número de 324 comunidades tradicionais que existem nos 23 municípios que fazem parte do litoral do Estado, dispostas entre quilombolas, indígenas e pescadores artesanais. [...] Hoje a nossa crítica está muito orientada por essa questão de ausência de dados. Como que nós vamos avaliar uma política de benefício, uma política de impacto, de retorno, de mitigação, se a gente nem sabe o que existe de fato?”, disse. A cartografia social é uma ferramenta que contribui para o planejamento de políticas públicas, inserindo a visão das populações afetadas pelo ordenamento territorial estatal.
Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alece, o deputado Renato Roseno (Psol), que tem acompanhado a articulação das comunidades e o trabalho de ambientalistas, aponta que a infraestrutura que vai ser construída em terra para processar a energia produzida causa o receio de desapropriação e de expropriação das comunidades.
Nesse sentido, Adryane aponta a necessidade do desenvolvimento de um planejamento espacial marinho, bem como do zoneamento ecológico, econômico e costeiro (Zeec) para que haja a exploração desses territórios e maretórios, que são os territórios das marés. Para ela, esses instrumentos propiciarão a construção de políticas públicas eficazes e sustentáveis.
No áudio a seguir, Adryane Gorayeb explica melhor o que são essas iniciativas:
No Ceará, a perspectiva é que sejam implantadas em torno de quatro mil torres eólicas no litoral, sobretudo nos parques offshore, que são instalados em alto-mar. Essa instalação levanta uma outra preocupação: o possível impacto para o turismo e para a pesca artesanal, que são duas atividades econômicas bastante exploradas no Estado.
“Isso vai ter, presume-se, impactos na biota marinha, no fluxo de aves, evidentemente na pesca artesanal. Nós temos mais de cinquenta mil famílias que dependem da pesca artesanal no Ceará, é o território do melhor navegador do mundo, que é o jangadeiro ‒ ele vai e volta utilizando-se de tecnologias artesanais. Então é uma característica importante da nossa costa”, pontuou o deputado Renato Roseno.
De acordo com informações do Ministério do Turismo (MTur), das 61 cidades cearenses registradas no Mapa do Turismo Brasileiro, 21 delas se localizam no litoral. Além disso, segundo dados do Comexstat, do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviço, o Ceará é responsável por mais de 25% das exportações de pescados do Brasil, alcançando o primeiro lugar na categoria que inclui peixes, peixes ornamentais, conserva de pescado, camarão, lagosta e outros pescados.
“Quando a gente pensa em torres eólicas, a gente pensa logo na paisagem e naquelas torres, mas também em termos de atração desse turista relacionado ao modo de vida. Quem vem para o Ceará não vai para Ibiapaba, não vai para Quixadá. Vai para a praia, vai comer um pescado, vai aproveitar a areia, vai fazer um esporte náutico”, afirma Adryane Gorayeb.
SUSTENTABILIDADE SOCIAL E ATUAÇÃO PARLAMENTAR
Visando à inclusão social, há no planejamento do Governo do Estado uma política que visa combater a desigualdade e a pobreza por meio da microgeração de energia, em especial no interior. Assim, além de produzir a energia para consumo próprio, o excedente da microgeração poderia ser vendido, gerando uma renda fixa para essas famílias.
“O que está sendo desenhado é a possibilidade de famílias de baixa renda, de alta vulnerabilidade social no estado do Ceará, especialmente no semiárido (...) onde estão os piores indicadores sociais e econômicos, se tornarem produtoras de energia elétrica renovável”, disse Salmito Filho.
Com o objetivo de estimular o desenvolvimento de pesquisas, Salmito Filho antecipa que o Ceará planeja criar um Centro de Excelência em Energias Renováveis e Hidrogênio Verde. Concomitante a isso, há também o objetivo de preparar mão de obra qualificada para o setor por meio das escolas profissionalizantes espalhadas pelo Ceará, possibilitando que os cearenses consigam ocupar os novos empregos que serão gerados em toda a cadeia de produção de energias renováveis e de hidrogênio verde.
Na Assembleia Legislativa do Ceará, o deputado Renato Roseno defende que a “energia certa não pode ser feita do jeito errado” e deve ser produzida de “um jeito socialmente justo”. O parlamentar é autor do projeto de lei 184/23, que prevê a criação de políticas para a transição sustentável e estabelece que a sociedade civil deve ser incluída nos debates estaduais sobre o tema.
“Esse hidrogênio tem que ser verde para todos, não só pro alemão, não só pro francês, mas também pro cearense, aquele que está aqui no litoral, ele não pode deixar passivos ambientais aqui. Uma matriz limpa deve ser feita respeitando as comunidades”, comentou.
Iniciativa do deputado Renato Roseno (Psol), tramita na Alece projeto de lei que prevê a criação de políticas para a transição sustentável. / Foto: Junior Pio
O Zeec citado pela professora Adryane Gorayeb está em tramitação na Alece por meio do PL 155/22, que dispõe sobre a Política Estadual do Gerenciamento Costeiro (PEGC) e a aprovação do Zoneamento Ecológico Econômico do Estado do Ceará (Zeec).
Além dos encaminhamentos da audiência pública realizada em maio pela Comissão de Direitos Humanos e Cidadania e pela Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento do Semiárido da Alece sobre as energias renováveis, Adryane também destacou como caminho para a construção da sustentabilidade social “a mudança de mentalidade em termos sobre o que é um crescimento econômico para o que é, de fato, um desenvolvimento social vinculado à preservação e à conservação ambiental”.
Esta foi a última de três reportagens especiais sobre o hidrogênio verde produzidas pela Agência de Notícias da Alece. Na primeira matéria, foi discutida a necessidade de regulamentação do setor e a atuação da Casa nesse sentido. Na cartilha "Hidrogênio Verde: a energia do futuro", são apresentadas questões introdutórias para a compreensão do tema, como o que é o H2V, qual o potencial dele e qual a relação direta com o Ceará. Já na terceira produção, são trazidas as perspectivas econômicas para o Ceará, a produção e a comercialização do H2V.
Participaram da série os repórteres Ana Vitória Marques e Geimison Maia; os fotógrafos Máximo Moura, José Leomar e Júnior Pio; o videomaker do Núcleo de Mídias Digitais, Odério Dias; a revisora Carmem Ciene e a editora Lusiana Freire. O projeto gráfico é de Alessandro Muratore e Alice Penaforte Muratore e a publicidade é de Ticiane Morais.
Edição: Lusiana Freire
Veja também