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Cozinhas solidárias mostram potência da sociedade civil no combate à fome

Por Samaisa dos Anjos
27/06/2023 11:27 | Atualizado há 9 meses

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A fome está presente em todas as regiões do Brasil, atingindo a população em seus direitos básicos e em sua cidadania. As desigualdades sociais que se entrelaçam à insegurança alimentar possuem especificidades que precisam ser levadas em conta na construção de ações. 

Nesta última matéria da série de reportagens da Agência de Notícias da Assembleia Legislativa, vamos apresentar algumas iniciativas, como as cozinhas solidárias, que têm impactado positivamente na vida de centenas de pessoas em situação de insegurança alimentar.

Segundo dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Penssan) de investigação realizada entre novembro de 2021 e abril de 2022, 125 milhões de pessoas viviam em insegurança alimentar e mais de 33 milhões enfrentavam uma situação de insegurança alimentar grave, o que incluía a fome.

Os marcadores geográficos, raciais e de gênero apresentados pela pesquisa desenham os perfis mais afetados pela incerteza do acesso à alimentação. A insegurança alimentar grave está presente em 18,6% dos domicílios rurais, em 43% das famílias com renda per capita de até 1/4 do salário mínimo e de forma mais intensa em casas chefiadas por mulheres e/ou por pessoas que se identificam como pretas ou pardas.

Segundo a pesquisa, 25,7% das famílias com insegurança alimentar grave são do Norte e 21% do Nordeste. Em números absolutos, o Ceará era o 4º estado do País com mais pessoas passando fome: 2,4 milhões. É diante desse cenário que o programa Ceará Sem Fome e o Pacto por um Ceará Sem Fome, do qual a Assembleia Legislativa do Estado do Ceará participa, vão atuar.

Ao longo dos anos e da história do Brasil e do Ceará, muitas pessoas se mobilizaram de diferentes formas para enfrentar a insegurança alimentar. A iniciativa da Alece, prevista na Lei 13.336, de adquirir e distribuir insumos alimentares e 300 kits de equipamentos para montagem de cozinhas comunitárias em municípios cearenses surge para fortalecer essa rede de ação e cidadania.

As movimentações de pessoas e grupos impactam a realidade de suas comunidades, bairros e cidades e mantêm cozinhas comunitárias que, para muitas pessoas, oferecem a principal fonte de alimentação diária.

AS COZINHAS COMUNITÁRIAS NO CEARÁ

Como primeiro passo para tornar realidade a Lei 13.336, o Conselho de Altos Estudos e Assuntos Estratégicos da Alece se debruçou na realização de um mapeamento sobre as cozinhas comunitárias no Estado, apresentado à Comissão de Proteção Social e Combate à Fome da Alece no final de maio. 

O presidente da Alece, Evandro Leitão (PDT), destaca que o trabalho de diagnóstico vai possibilitar a melhor estratégia e destinação dos recursos, dentro das necessidades apontadas, nos locais onde há mais demandas. “O uso de recursos com responsabilidade e qualificação vai determinar a melhor qualidade da política pública”, explica. 

O levantamento contou com o apoio do Conselho Estadual dos Gestores Municipais da Assistência Social (Coegemas) para coleta de dados, assim como da equipe do programa Ceará Sem Fome e da Secretaria de Proteção Social (SPS). 

Luiza Martins, secretária executiva do conselho, órgão presidido pelo deputado Davi de Raimundão (MDB), explica a iniciativa e os primeiros passos da Alece. 

O levantamento aponta que 139 municípios cearenses relataram não possuir cozinhas comunitárias, um cenário que alerta para o desafio imposto, assim como para a possibilidade de atuação a partir desses vazios. Dos 45 municípios com cozinha, Fortaleza, segundo informações da Prefeitura, teria 25 em funcionamento em bairros periféricos, algumas delas desde 1980.

Existem 81 cozinhas em funcionamento nos municípios do Interior e 14 sem funcionar, segundo o mapeamento. Entre os motivos para as cozinhas não funcionarem estão a falta de insumos, de pessoal, de equipamento e de estrutura física. Das cozinhas em funcionamento, 96,30% relataram enfrentar carência de equipamentos.

Segundo a pesquisa, as cozinhas estão presentes nos centros urbanos mais populosos das macrorregiões da Região Metropolitana de Fortaleza, Sertão Central, Sertão de Crateús, Sertão de Sobral, Centro-Sul e Cariri. “Entretanto, três em cada quatro municípios cearenses ainda carecem desse tipo de iniciativa, seja pública ou privada. É importante salientar que, mesmo onde existem cozinhas em funcionamento, a cobertura é insuficiente”, destaca o relatório.

O impacto do trabalho das cozinhas comunitárias beneficia a população mais vulnerável, uma vez que, de acordo com o levantamento, os usuários das cozinhas são principalmente pessoas inscritas no Cadastro Único para Programa Sociais (Cadúnico) e que são atendidas nos Centros de Referência de Assistência Social (Cras).

Das 81 cozinhas em funcionamento, 45 estão vinculadas à sociedade civil e 36 ao poder público. Em média, são servidas 142,53 refeições por dia em cada cozinha. Sobre os insumos, apenas 22 utilizam produtos da agricultura familiar. O uso da produção da agricultura familiar do Estado é um dos pontos em debate no Programa Ceará Sem Fome como estratégia para garantir alimentação saudável e fortalecer os produtores.

O mapeamento produzido pela Alece é um importante e inicial passo diante da complexidade de acesso aos dados e principalmente da realidade de todos os municípios. Diante desse contexto, o Conselho de Altos Estudos propõe uma série de ações, como garantir a regularidade no recebimento de insumos, sobretudo daqueles advindos da agricultura familiar, para o preparo das refeições; assegurar o funcionamento diário das cozinhas no café da manhã, no almoço e no jantar.

Também são propostos o incentivo à abertura de novas cozinhas nos municípios não atendidos, o apoio à estruturação das cozinhas com equipamentos, a capacitação das equipes de trabalho e a inclusão de apoio às cozinhas de iniciativa dos poderes públicos municipais. 

MUITO MAIS DO QUE UMA COZINHA

O que pode surgir de uma cozinha solidária? Alimento para a fome diária sim, mas também acolhida em territórios em que as lacunas de direitos são muitas. Em Fortaleza, na Cozinha Solidária do Maria Tomásia, no Jangurussu, antes de a fila para receber a quentinha na hora do almoço se formar, crianças das redondezas já estão no espaço, brincando e jogando xadrez.

A cozinha foi criada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que está construindo ainda uma no Conjunto José Euclides e tem projeto para uma no Cidade Jardim 1. 

Cozinha Solidária do Maria Tomásia, no Jangurussu / Foto: Bia Medeiros

De segunda a sexta, o pequeno ambiente da cozinha prepara, em média, 120 refeições por dia, sem apoio do poder público. O trabalho diário no Maria Tomásia, que conta com doações arrecadadas por campanha do MTST e de pessoas físicas, começou em abril de 2022. Em pouco mais de um ano, foram mais de 70 mil refeições entregues, aponta a coordenação.

Em uma das áreas de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Fortaleza, as vulnerabilidades são muitas. Sérgio Farias, coordenador do MTST, considera que as cozinhas solidárias são portas de entrada de direitos.

“Uma cozinha solidária em um ambiente de tamanha pobreza é extremamente impactante. Para a gente, a cozinha solidária não é distribuir comida, é mudar a vida das pessoas”, avalia.

O projeto de cozinhas solidárias do MTST surgiu ainda no período da pandemia e segue em funcionamento, com 45 cozinhas em diversas periferias das cidades brasileiras, oferecendo refeições para famílias a partir do apoio social. 

Daniele de Souza Lopes, de 37 anos, atua na cozinha do Maria Tomásia e comenta a importância dela para as pessoas. 

Sílvia Helena Alves, de 64 anos, mora nas proximidades da cozinha solidária do Maria Tomásia. Sem renda, as duas marmitas do almoço do dia alimentam a idosa e o marido, uma vez que as filhas almoçam na escola. Para ela, a cozinha é uma “coisa muito boa”, uma certeza que ajuda nos dias da família.

Segundo a organização da cozinha, o perfil de beneficiados costuma ser composto, em sua maioria, de mulheres, pessoas idosas, grávidas, famílias com crianças, pessoas em situação de rua.

APOIO ÀS COZINHAS

Na avaliação do coordenador do MTST, o Pacto por um Ceará Sem Fome é importante, mas é necessário o envolvimento efetivo da sociedade, contemplando quem faz, quem doa, quem financia, quem recebe, compondo uma rede conectada aos municípios.

O público atendido pelas cozinhas poderia ser bem maior com mais insumos, e as unidades que encontram dificuldades para funcionar poderiam ter um trabalho mais eficiente a partir da distribuição de equipamentos e insumos.

Sérgio Farias também chama a atenção para a efetividade de um cenário com poucas cozinhas – e pouco ou nenhum apoio do poder público – para uma rede ampla e complexa. Enfatiza, dessa forma, a importância do trabalho contínuo e que contemple as mais variadas demandas do local, podendo ser ponto de apoio de outras políticas públicas.

O apoio do poder público, como o previsto pela campanha Ceará Sem Fome, é muito bem-vindo, indica Sérgio, mas até chegarem, a cozinha precisa seguir funcionando de alguma forma. É por isso que o apoio da sociedade civil segue essencial.

BRASIL DA FOME E DA AÇÃO

O trabalho realizado pelas cozinhas solidárias em todo o Brasil, mantidas por diversos grupos, mostra a potência da mobilização social, o impacto para as populações mais vulneráveis e para o debate público.

Ao longo da história recente do Brasil, muitas foram as iniciativas com foco no combate à fome, sejam contínuas ou pontuais, um reflexo de como a insegurança alimentar acompanha a realidade de exclusão social do País.

Debatendo temas sociais diversos por décadas, a Campanha da Fraternidade, realizada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), tem como tema, em 2023, “Fraternidade e fome”, com o lema “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16).

Em outros dois momentos, a campanha, iniciada em 1964, tratou da fome. Em 1975, abordou o tema “Fraternidade é repartir”, fazendo referência à partilha do pão e às carências presentes na sociedade. E, em1985, o tema foi “Fraternidade e fome” e o lema usado foi “Pão para quem tem fome”.

Grande marco da mobilização social no tema, a Ação pela Cidadania foi criada em 1993, em prol dos 32 milhões de brasileiros que, naquele momento, estavam abaixo da linha da pobreza. O sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, foi a grande figura do movimento nacional, destacando a urgência de ação contra a fome da população.

Trinta anos depois, a Ação pela Cidadania, que segue atuando, destaca o retrocesso da fome com as 33 milhões de pessoas que estão em situação de insegurança alimentar no País. “Mesmo quem planta não tem o que comer. Quem ganha um salário mínimo não consegue comer. Lares com crianças menores de 10 anos também são os mais vulneráveis. Consegue imaginar?”, questiona a Ação.

As atividades da sociedade civil ganharam reforço nos anos 2000. Em 2003, a fome da população foi colocada como prioridade do Governo Federal na gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em seu primeiro mandato.

No mesmo ano, foi lançado o programa Fome Zero, integrando iniciativas emergenciais e políticas públicas para a população vulnerável de todas as regiões brasileiras. Foi criado também o Bolsa Família, programa de transferência de renda para famílias em situação de pobreza e extrema pobreza.

O Bolsa Família foi considerado, ao longo dos anos, o maior programa de transferência de renda do mundo, tendo reconhecida sua importância para a redução da pobreza no País e para a saída do Brasil do Mapa da Fome em 2014. O benefício, que dependia de diversos fatores, exigia comprovação de frequência escolar das crianças e adolescentes da família, assim como vacinação em dia para as crianças e exames pré-natal para as gestantes.

Em 2021, a lei que criou o Bolsa Família foi revogada, e uma medida provisória do então presidente Jair Bolsonaro criou o programa Auxílio Brasil. Em 2023, uma nova versão do Bolsa Família foi criada pelo Governo Federal.

SÉRIE CEARÁ SEM FOME

O enfrentamento à insegurança alimentar foi tema de uma série de matérias produzidas pela Agência de Notícias da Alece. 

A primeira matéria apresentou dados sobre a segurança alimentar no Ceará e a articulação de ações do Governo Estadual e do Poder Legislativo para o enfrentamento ao problema da fome. A segunda matéria acompanhou o evento de lançamento do Pacto Ceará Sem Fome e as ações apresentadas para o efetivo e integrado trabalho de enfrentamento à insegurança alimentar. A terceira matéria detalhou as ações sociais da Alece a curto, médio e longo prazo para enfrentar a insegurança alimentar no Ceará, e as iniciativas legislativas de políticas públicas que contribuam com a área.

A série tem textos de Gleydson Silva, Ricardo Garcia e Samaisa dos Anjos, edição de Clara Guimarães, revisão de Carmem Ciene, vídeo de Odério Dias, fotos de Júnior Pio, Dário Gabriel, Bia Medeiros, Paulo Rocha e José Leomar e arte do Núcleo de Publicidade da Alece.

Edição: Clara Guimarães

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